José Gomes Temporão e Francisco Campos*
O processo de estruturação do SUS desde seus primórdios se defrontou com a questão da má distribuição dos médicos no país. Um famoso sanitarista dos anos 70, Carlos Gentile de Melo, já apontava para a coincidência entre a distribuição de médicos e a existência de agência bancária no local. Ou seja, os médicos vão aonde existem recursos, o que não é de modo algum demérito, apenas um fato. Dispor de médicos nas regiões mais pobres e remotas em caráter permanente é um grande desafio.
Faltam médicos em áreas da ilha de Manhattan, na província de Ontário, em diversas partes da Europa, na África e no sudeste da Ásia. Muitos países utilizam o recrutamento especial para regiões pouco atrativas, permitindo que profissionais formados em outros países exerçam a medicina em certas áreas. O exemplo mais claro é o “Moratorium” australiano, que recruta médicos da Índia, Paquistão e de outros países.
Várias propostas têm sido implementadas para superar esse problema, desde a criação de incentivos financeiros e investimento em infraestrutura até a garantia de um plano de carreira específico.
No Brasil, o SUS colocou nas mãos dos municípios a responsabilidade pelos serviços básicos de saúde. É comum que essa realidade crie situações de disputa desses profissionais com propostas de salários e condições de trabalho impossíveis de serem honradas, prejudicando a criação de vínculos entre médicos e a população, um dos pré-requisitos de uma atenção básica resolutiva.
Por outro lado, não há dúvida de que milhões de brasileiros só passaram a contar com assistência médica regular após a presença do Mais Médicos e dos médicos cubanos –e, ao contrário do que alguns afirmam, eles são profissionais qualificados para o exercício da clínica na atenção básica. Com a iniciativa tomada pelo governo cubano de denunciar o acordo com o governo brasileiro, cerca de 8.000 médicos deixarão o país nas próximas semanas.
As medidas emergenciais anunciadas pelo governo para repor esses profissionais não surtirão efeito a curto prazo, o que poderá criar grave situação, deixando nossos compatriotas desassistidos.
Enfim, como no tempo de Carlos Gentile o problema continua sem uma solução adequada e não existem soluções mágicas como a defendida nesta Folha pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella, no último domingo (18). Enfrentar essa complexa questão exige a construção de uma estratégia de médio e longo prazos que contemple, pelo menos:
1) a criação do Serviço Civil Obrigatório para graduados em medicina, odontologia e enfermagem em universidades públicas ou cuja formação tenha sido custeada por recursos públicos. Isso exigirá mecanismos de supervisão para a atuação desses recém-formados, que pode ser suprida por meio de parcerias com universidades.
2) a criação de uma carreira de Estado para médicos, enfermeiros e odontólogos para suprir essas regiões mais pobres e desassistidas e de mais baixo IDH.
3) a revisão da necessidade de leis específicas para cada categoria profissional (como a Lei do Ato Médico), o que dificulta a existência de atos compartilhados mais flexíveis e adequados às equipes multiprofissionais. Dever-se-ia pensar em escopos de prática em que o compartilhamento seja a regra, não a exceção.
4) o apoio aos profissionais que atuam nessas áreas, por meio da telemedicina e da educação permanente.
5) a garantia de condições para o bom exercício profissional, com unidades de saúde bem equipadas, disponibilidade de insumos, garantindo a qualidade e resolutividade da atenção básica.
Só assim, contando com médicos e outros profissionais de modo permanente em todo o país, construiremos um sistema que atenda às expectativas e necessidades da sociedade.
*José Gomes Temporão e Francisco Campos
Ex-ministro da Saúde (2007-2010, governo Lula) e médico sanitarista; Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais
Publicado na Folha de S.Paulo em 21 de novembro de 2018.